Papai, Morte... e um Violino no fim

Microconto Inabitual
Ao ouvir o recado da telefonista minhas pernas começam a bambear, a secura dos lábios quase não me deixa responder à moça. Papai ao telefone. Ilustre residente do interior de Goiás. Acontecera uma tragédia, certamente. Ele só me ligava para isso. Ou pior: estava sozinho em casa, início de infarto, derrame ou coisa parecida. Na alçada de oitenta e oito anos pouca coisa poderia fazer. Não bastava o estresse do trabalho, porções de problemas a serem resolvidos, palavrões na fila do caixa, ligação telefônica do planalto central.
A voz dele não sugeria preocupação, o nervosismo foi cessando paulatinamente até chegar ao completo estado de calmaria. Mas meu pai não suportava o mormaço, após algumas perguntas e respostas de praxe – como vai a família, saúde, emprego, etc. – veio com esta: tenho uma triste notícia para você. Lá vem bomba, meu Deus! Já me conformava com a ausência paterna. O corpo gelado, a mão trêmula, os olhos marejados levantavam suspeitas dos colegas e clientes que me viam consternado ao telefone.
Nessas horas as lembranças borbulham. Os dias em que meu pai e eu saíamos para pescar, depois o acampamento, o mergulho na cachoeirinha. Que saudade da vida pacata, longe da frieza do banco. Vá lá, meu velho, lance a flecha no meu peito. Pois é, meu filho, sabe o Lelê, o cachorrinho que você me deu nas férias. Sei, sei. Você não vai acreditar. Desembucha, homem! Um carro-pipa atropelou o pobre, morreu na hora. Ao desligar, solicitei uma licença ao gerente. Enterramos o Lelê ao som triste de um violino.

8 comentários:

Sandra Regina disse...

Notas melancólicas acompanham o cortejo... Perfeita sua prosa... Gosto da sua escrita sensível! Confetes e beijos

clarice ge disse...

Perdas... sabemos que elas virão. Mas sempre nos causam surpresa e dor. É triste perder, seja um ente querido ou um animalzinho. Cada qual tem a sua proporção no espaço que guardamos nossos afetos no coração.
Carinhos Antônio

Larissa Marques - LM@rq disse...

Mais uma vez sua marca, revelas as hipocrisias sociais com sutileza e maestria, admiro-te. É, em minha humilde opinião, um dos melhores contistas/cronistas que conheço, moço.
Para o cachorro faz-se sacrifícios, e se fosse o pai?
Beijo grande e reverências!

deep disse...

gosto do detalhe e do caminho que a palavra ganha nesse devendar de olhares dispersos...

um abraço

Pedro Pan disse...

, leva o leitor a passear pelo suspense de um telefonema em horário de serviço. até chegar ao som do violino...
, abraços meus.

Helder Herik disse...

esse blog é um dos melhores cara


parabens

Feliz disse...

ah meu caro... já tive que recolher os restos mortais de uma cadela que tinha por uns 100 metros. só que o caminhão era da eletropaulo. abraço.

diovvani mendonça disse...

É Antônio, quando pessoas queridas nossas, adentram no oco do mistério, é foda. Meu pai Vicente, já se foi e gostaria muito de tô-lo ao meu lado.

O Lelê, foi ao som de um violino e o Bono, um labrador que eu tinha foi ao som do choro, doído de minha namorada. Lembro que escrevi alguma coisa sobre isso. Escrevi, na época, que eu nunca tinha visto em uma pessoa tanto desejo e potência para matar a morte - como ví em Vanusa, hoje minha esposa. Mas vida é isso: encontros e despedidas.

AbraçoDasMontanhas