O Analfabeto

Microconto Inabitual
Aríedes pegou a senha de atendimento. Números ele sabia discernir bem, pela inscrição do papelzinho ia demorar. Umas cinqüenta pessoas esperavam a sua frente, mas isso não o incomodava. O que afligia sua cabeça de operário era o instante de chegar tête-à-tête com o caixa, certamente ele pediria para que assinasse, se olhasse com atenção à carteira de identidade leria o carimbo “não alfabetizado”, depois o homem do banco diria: tão novo e não sabe assinar o próprio nome. Ao que Aríedes daria um sorrisinho desconsertado. Namorar você aprendeu rapidinho, né? Outro sorrisinho, já com a banguela em evidência.
Se Aríedes tivesse um pai dedicado até poderia ser posto em colégio. Desde criança aprendeu a lida da roça, chapeuzinho de palha na cabeça para proteger do sol. Na adolescência uma mulher da Igreja Católica visitou a família e intimou a leitura a todos os meninos e meninas da casa. Foram todos para a escolinha que ficava a quatro quilômetros do sítio. O á-bê-cê era um mundo de doidos, onde já se viu ficar à mercê de letrinhas miúdas, fez inúmeras tentativas, aquela seqüência iconográfica era um tormento. E a preguiça, tamanha. Daí, veio a gravidez de Lara. Encontrou a válvula de escape.
Uma hora após a chegada, o letreiro vermelho anunciou o número da senha de Aríedes. Caminhou com lentidão ao guichê, entregou todos os documentos da rescisão de contrato, carteira de trabalho e identidade. O bancário passou os olhos atentamente a tudo. Abriu a gaveta, pegou a almofadinha, pediu que Aríedes abrisse a mão, colheu a digital. Abriu a gaveta novamente, contou o dinheiro e o entregou. Com o dinheiro na mão, Aríedes se esqueceu da angústia. Três coisas preenchiam seu cérebro na saída do banco: açougue, mercado e bordel.

10 comentários:

Lua Durand disse...

Açougue, mercado e Bordel.

Aríedes coitado na vida teve duas familias.

Uma que lhe deu a vida
E outra que lhe moldou à vida. [sociedade]

Enfim.

ótimo texto

Au Revoir

diovvani mendonça disse...

"O á-bê-cê era um mundo de doidos"
Guardadas, às devidas proporções o B.A.B.A do escrever, para mim, é muito difícil. AbraçoDasMontanhas.

Leila Andrade disse...

Agora caminho em teu passeio público, um prazer. Demorado.
Beijos.

L. Rafael Nolli disse...

Olá, Antônio! Gostei do texto. Retrata com precisão uma realidade - infelizmente - ainda muito marcante! Com precisão, meu camarada!

Loba disse...

Cada parágrafo me trouxe a vontade de uma reescrita. Por concordância, por ampliação, pela simples vontade de reescrever o que gostei muito.
Li todos os contos da página. E foi uma leitura prazerosa. Parabéns pelo espaço. É ótimo!
Beijos

A czarina das quinquilharias disse...

inabitual, de fato.
uma fatiazinha de vida...
:]

subby disse...

a cada frase eu descobria Aríades...
mesmo perto do fim eu ainda não havia entendido ele muito bem..
ele eh inconstante.

adorei o texto.
ótimo blog.

:]

beijos!

Larissa Marques - LM@rq disse...

A fome das carnes, ai as fomes. Lindo!
Beijo!

octavio roggiero neto disse...

Aríedes, pobre Aríedes, a cara do Brasil, o acanhamento servil de quem tem umas 80 palavras, se muito, em seu vocabulário. meu Deus, como imaginar um universo desses, de tão restritíssimas possibilidades para arquitetar raciocínios, senão os mais primitivos, quase animalescos? o temor reverencial de uma maioria, o vexame de ostentar em sua identidade um "não alfabetizado". e ainda a burocracia, o cansaço, os outros-feras espreitando salivantes os restos de um "cadáver-adiado" e o tempo, fatal. fica a pergunta: quem somos ele?
belo, Antônio: tocou direitinho na ferida, sem dó!

Ana P. disse...

Ai, que eu num falo assim com meus clientes não, tadinhos... eles mesmos que viram pra mim e falam: "ô moça, eu vou ter que apunhar o dedão, pq essa mão aqui num escreve nem a letra a!"

Tão bonzinhos... mas bordel??? nhunf! Isso eles num fazem não... a marvada, é um fato, eles vão e bebem mesmo!!!