Bicho-Papão na alcova de Maria

Microconto Inabitual

O bicho-papão é terrível, come criancinhas. Chega à sorrelfa, imobiliza a vítima, lambe os beiços e se banqueteia. Quando mamãe contava as histórias de assustar, eu fingia que morria de medo, achava que era papo furado de gente grande. Hoje eu sei que é real. Avassalador. Ela tranca todas as noites a porta de meu quarto na esperança do peste não entrar. De nada adianta.

Há três dias ele abre a porta devagarinho, chaves são irrisórias para o bicho-papão. Eu, jovenzinha que sou, não me debato mais no leito. Ontem gritei por mamãe, ela não escutou um pio. Por mais que eu dissesse no outro dia do atentado só obtive o desdém de quem tem a razão tatuada na testa. Nem o sangue derramado a convenceu. Ah, doce mulher, mal sabes da metade da reza.

O rangido estremece todo quarto, a luz da lamparina traz consigo a imagem cada vez mais nítida do pecado. Já posso ver as unhas grandes, os dentes caninos, as orelhas pontiagudas, o som esbaforido da respiração. Vamos brincar, Maria?

6 comentários:

octavio roggiero neto disse...

a ficção, aqui no passeio público, é uma aguda perspectiva da realidade, um pretexto pra revelar coisas que o relato cru não alcançaria, um convite para novas possibilidades da linguagem em prosa.
percebo pitadas da Clarice aqui em seu estilo bem temperado.
três vezes estive neste seu espaço e três vezes "adorei"!
meu, quando cê tiver um tempo, dê uma lidinha nisto aqui ó: http://retalhosdeumdiaqualquer.blogspot.com/ quando li o bicho papão na alcova de Maria me veio na hora este poema da Débora. outra hora também indicarei seu blog pra ela, beleza?
ah! tive acesso ao perfil da Larissa Marques por meio de seu blog. que “fenômeno” ela, não? vou visitá-la com muita calma, porque pelo visto é vasta a obra literária dela.
forte abraço, Antônio!

Keila Sgobi de Barros disse...

Ao contrário ed meu amigo Octávio, não fico analisando muito não. Digo o que sinto na lata: a menininha sofreu?

principesca disse...

...é, você adivinhou meus pensamentos... foi refutando Hume (meio que inconscientemente, vai) que escrevi. Beijo!

diovvani mendonça disse...

Antônio, gostei muito da expressão "razão tatuada na testa". Agora essa Maria... sei não... como diria um amigo meu "essa menina anda fazendo bubiça". (rsrs) E você meu caro, tem potência, para fazer o imaginário saltar na garganta da realidade. AbraçoDasMinas.

clarice ge disse...

Bicho papão assalta o inferno e prende o próprio diabo. Visita galinheiro familiar e deixa ovo choco de galinha sem cabeça. Azara a vida de peixinho e o transforma em gente (que nem água tem em seu aquário mas vive se afogando). Visita biblioteca e transforma Tereza em traça. "Bicho-Papão, sai de cima do telhado. Deixa a criancinha dormir sossegada"...
e salve Chico e Antônio Alves.
abraço meu

Larissa Marques - LM@rq disse...

Que delícia de conto, bem do jeito que eu gosto, e eu não tenho pena da moçoila, antes mal acompanhada que só. E pelo jeito, ela está é muito bem acompanhada!